Tento não me esquecer de que é só mais um domingo. Nada mais que só mais um domingo. Me atenho ao apelo comercial do dia, um dia de shopping lotado, de flores a preços absurdos nas floriculturas e esquinas, de gente à beça nas lojas de eletroeletrônicos, de celulares, de perfumes, de chocolates, e mães cozinhando, felizes, desde a véspera, para receber os filhos, genros, noras, netos, que almoçam, se esparramam no sofá para ver o jogo, bagunçam a casa, e vão embora. Claro que as mães adoram ver toda a sua família reunida na mesa desse domingo. Têm prazer em cozinhar para todos. Será mesmo?... Não deveria ser um dia de sossego para as mães? Bom, enfim...
Eu mesma fui à casa da minha segunda mãe - é uma bobagem, mas a palavra 'madrasta' soa tão... maléfico, como se as madrastas fossem todas bruxas que envenenam maçãs ou que forçam a enteada a trabalhar pesado enquanto elas ficam de boa. Que tosco. É, eu fui lá, como em todos os anos, para o almoço de dias das mães, para a feijoada light que ela sabe fazer como ninguém. E ela faz questão de fazer um almoço nesse dia e de nos chamar, a mim e à minha irmã (ela não teve filhos com meu pai). Eu nem vou pelo almoço, iria mesmo que não tivesse almoço, vou para lhe dar um abraço, ficar perto, para conversar, porque raramente vou vê-la, o que é uma enorme falta, eu sei.
Confesso aqui uma coisa que percebo em mim : tenho uma certa revolta com isso de não ter mãe. Bom, 'revolta' pode parecer coisa de adolescente problemático, mas não é esse tipo de revolta, nem é uma revolta que prejudique, nem sei se é revolta, é um sentimento estranho... Ah, sei lá. Não que minha madrasta não mereça meu carinho, ela merece sim, e muito, faz de tudo, de tudo mesmo, pra mim e para minha irmã, pra mim principalmente, é muito bondosa, e ela tem todo o meu carinho, todo o meu afeto, toda minha gratidão, mesmo eu não indo visitá-la com mais frequência. Mas... não sei, falta algo... um algo... Algo que tem a ver com... chamar de mãe.
Minha mãe se foi quando eu era criança, eu praticamente a vi morrer, nos braços do meu pai, numa madrugada fria de agosto. Não estou fazendo drama, sei que não sou a única no mundo que perdeu a mãe ainda criança, imagine, também não se trata de autocomiseração, só estou dizendo como aconteceu. Mas, então, apesar de ser criança na época, eu me lembro bem dela: alta, pele clara, cabelos pretos, magra, elegante, bonita, exatamente como... as mulheres de Edgar Allan Poe. Morreu jovem, como as mulheres de Edgar Allan Poe...
Me lembro de muitas passagens, passagens alegres e tristes, mas, infelizmente, me lembro mais de passagens tristes. Com certeza teve muitas passagens alegres, mas acho que eu era bem mais criança, e a maioria minha memória não registrou. Quero mencionar aqui apenas uma das passagens de que me lembro, que dá uma ideia da natureza da minha mãe: me lembro de, numa tarde, ter visto minha mãe ajoelhada em frente a uma imagem, e havia uma vela acesa ao lado da imagem. Ela estava com nossa cachorrinha, Lady, no colo. A Lady tinha ingerido veneno de rato, estava muito doente, estava morrendo. Alguém, talvez um veterinário, não me lembro, tinha explicado a ação do veneno no organismo dos ratos, e ela soube como a Lady estava sofrendo, e não havia esperança. Minha mãe pedia com tanto fervor para a santa não deixar a Lady morrer, para não deixá-la sofrer... No dia seguinte, a Lady estava bem esperta, e nos dias seguintes, se curou totalmente, viveu até após a morte da minha mãe, alguns anos depois. Não sei o que foi aquilo, sei que aconteceu.
Eu queria muito ter estado com minha mãe durante a doença dela, queria muito não ter deixado ela sozinha e no escuro, eu era criança, estava brincando na rua, meu pai ainda ia chegar do trabalho, e eu a deixei só, escureceu , e ela na cama, não podia levantar... Sinto um imenso remorso por isso, nossa, como me arrependo disso!... Eu era criança, mas sinto culpa, e vivo pensando que é mesmo pra eu sentir culpa, porque, se não fosse, eu não lembraria desse ocorrido. Não que eu pense nisso as vinte e quatro horas do dia, mas, num dia como ontem, por exemplo, eu penso. A vida nos ensina, e boa parte do material didático são as nossas próprias ações. Há os que aprendem, há os que nunca aprendem. Sempre aprendo com meus erros. Nunca mais deixarei alguém sozinho no escuro.
Essas são algumas das muitas coisas de que me lembro, e de que jamais me esquecerei.
De vez em quando me pego pensando: ... como teria sido a minha adolescência com minha mãe? Como teria sido me tornar uma mulher tendo ela comigo? Como teriam sido todas as minhas fases com ela presente? E as fases dela comigo? Será que eu ia poder falar abertamente com ela sobre todos os assuntos? Será que seríamos amigas? Isso eu acho que sim, porque me lembro que ela ajudava minha prima, sobrinha do meu pai, e procurava acertar as coisas nas brigas do meu pai com a irmã mais nova dele, que veio morar conosco e arrumou um namorado de quem meu pai não gostava, achava que ele era um aproveitador, aquelas coisas...
Será que riríamos juntas? Que iríamos ao cinema juntas? Que discutiríamos? Discutiríamos muito ou pouco?...
São coisas que nunca vou saber. Fosse como fosse, se ela pudesse ter ficado mais um tempo, acho que teria sido bem legal.
Será que quando a gente se for também, a gente vai reencontrar quem a gente amava?
Vou visitar mais a minha segunda mãe, estarei mais presente.