Detesto que me roubem a solidão sem me dar em troca verdadeiramente companhia. (Friedrich Nietzsche).

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Um domingo, uma olhada no passado




Tento não me esquecer de que é só mais um domingo. Nada mais que só mais um domingo. Me atenho ao apelo comercial do dia, um dia de shopping lotado, de flores  a preços absurdos nas floriculturas e esquinas, de gente à beça nas lojas de eletroeletrônicos, de celulares, de perfumes, de chocolates, e mães cozinhando, felizes, desde a véspera, para receber os filhos, genros, noras, netos,  que almoçam, se esparramam no sofá para ver o jogo, bagunçam a casa, e vão embora. Claro que as mães adoram ver toda a sua família reunida na mesa desse domingo. Têm prazer em cozinhar para todos. Será mesmo?... Não deveria ser um dia de sossego para as mães? Bom, enfim...
Eu mesma fui à casa da minha segunda mãe -  é uma bobagem, mas a palavra 'madrasta' soa tão... maléfico, como se as madrastas fossem todas bruxas que envenenam maçãs ou que forçam a enteada a trabalhar pesado enquanto elas ficam de boa. Que tosco. É, eu fui lá, como em todos os anos, para o almoço de dias das mães, para a feijoada light que ela sabe fazer como ninguém. E ela faz questão de fazer um almoço nesse dia e de nos chamar, a mim e à minha irmã (ela não teve filhos com meu pai). Eu nem vou pelo almoço, iria mesmo que não tivesse almoço, vou para lhe dar um abraço, ficar perto, para conversar, porque raramente vou vê-la, o que é uma enorme falta, eu sei.
Confesso aqui uma coisa que percebo em mim : tenho uma certa revolta com isso de não ter mãe. Bom, 'revolta' pode parecer coisa de adolescente problemático, mas não é esse tipo de revolta, nem é uma revolta que prejudique, nem sei se é revolta, é um sentimento estranho... Ah, sei lá. Não que minha madrasta não mereça meu carinho, ela merece sim, e muito, faz de tudo, de tudo mesmo,  pra mim e para minha irmã, pra mim principalmente, é muito bondosa, e ela tem todo o meu carinho, todo o meu afeto, toda minha gratidão, mesmo eu não indo visitá-la com mais frequência.  Mas...  não sei, falta algo... um algo... Algo que tem a ver com... chamar de mãe.
Minha mãe se foi quando eu era criança, eu praticamente a vi morrer, nos braços do meu pai, numa madrugada fria de agosto.  Não estou fazendo drama, sei que não sou a única no mundo que perdeu a mãe ainda criança, imagine,  também não se trata de autocomiseração, só estou dizendo como aconteceu. Mas, então, apesar de ser criança na época, eu me lembro bem dela: alta, pele clara, cabelos pretos, magra, elegante, bonita, exatamente como... as mulheres de Edgar Allan Poe. Morreu jovem, como as mulheres de  Edgar Allan Poe...
Me lembro de muitas passagens, passagens alegres e tristes, mas, infelizmente, me lembro mais de passagens tristes. Com certeza teve muitas passagens alegres, mas acho que eu era bem mais criança, e a maioria minha memória não registrou. Quero mencionar aqui apenas uma das passagens de que me lembro, que dá uma ideia da natureza da minha mãe: me lembro de, numa tarde, ter visto minha mãe ajoelhada em frente a uma imagem, e havia uma vela acesa ao lado da imagem. Ela estava com nossa cachorrinha, Lady, no colo. A Lady tinha ingerido veneno de rato, estava muito doente, estava morrendo. Alguém, talvez um veterinário, não me lembro, tinha explicado a ação do veneno no organismo dos ratos, e ela soube como a Lady estava sofrendo, e não havia esperança. Minha mãe pedia com tanto fervor para a santa não deixar a Lady morrer, para não deixá-la sofrer... No dia seguinte, a Lady estava bem esperta, e nos dias seguintes, se curou totalmente, viveu até após a morte da minha mãe, alguns anos depois. Não sei o que foi aquilo, sei que aconteceu.
Eu queria muito ter estado com minha mãe durante a doença dela, queria muito não ter deixado ela sozinha e no escuro, eu era criança, estava brincando na rua, meu pai ainda ia chegar do trabalho, e eu a deixei só, escureceu , e ela na cama, não podia levantar... Sinto um imenso remorso por isso, nossa, como me arrependo disso!... Eu era criança, mas sinto culpa, e vivo pensando que é mesmo pra eu sentir culpa, porque, se não fosse, eu não lembraria desse ocorrido. Não que eu pense nisso as vinte e quatro horas do dia, mas, num dia como ontem, por exemplo, eu penso. A vida nos ensina, e boa parte do material didático são as nossas próprias ações. Há os que aprendem, há os que nunca aprendem. Sempre aprendo com meus erros. Nunca mais deixarei alguém sozinho no escuro.
Essas são  algumas das muitas coisas de que me lembro, e de que jamais me esquecerei.
De vez em quando me pego pensando: ... como teria sido a minha adolescência com minha mãe? Como teria sido me tornar uma mulher tendo ela comigo? Como teriam sido todas as minhas fases com ela presente? E as fases dela comigo? Será que eu ia poder falar abertamente com ela sobre todos os assuntos? Será que seríamos amigas? Isso eu acho que sim, porque me lembro que ela ajudava minha prima, sobrinha do meu pai, e procurava acertar as coisas  nas brigas do meu pai com a irmã mais nova dele, que veio morar conosco e arrumou um namorado de quem meu pai não gostava, achava que ele era um aproveitador, aquelas coisas...
Será que riríamos juntas? Que iríamos ao cinema juntas? Que discutiríamos? Discutiríamos muito ou pouco?...

São coisas que nunca vou saber.  Fosse como fosse, se ela pudesse ter ficado mais um tempo, acho que teria sido bem legal.

Será que quando a gente se for também, a gente vai reencontrar quem a gente amava?

Vou visitar mais a minha segunda mãe, estarei mais presente.





13 comentários:

  1. Uma pena você ter perdido a sua mãe tão cedo, Ligeia, mas eu acredito que nós nos reeencontramos depois da morte. Não imagino onde será, só sei que deve ser assim. Então visite mais a sua segunda mãe já que ela é tão boa pra você. Que bom que voltou. Abraços.

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  2. Oi, Gilberto! É uma pena crianças ficarem órfãs, principalmente de mãe. Mas a vida é isso, e isso se chama realidade, rs. Aprendo muito com a vida, que é a melhor escola, e estou sempre aprendendo, por isso acho que sou sempre uma pessoa melhor e mais forte a cada dia. Também creio, ou quero crer, ou preciso crer, o que é mais provável, que reencontramos quem a gente ama depois da morte. E se for assim, realmente não existe morte, só, como dizem, uma passagem. Ontem foi um dia bem legal, e pude refletir sobre visitar mais minha segunda mãe.

    Muitíssimo obrigada pela atenção e delicadeza, Gilberto.

    Logo vou ao seu blog me atualizar de todas as coisas boas que perdi.

    um abraço pra você!

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  3. Maio é um mês difícil para mim também, não porque fale de maternidade eu tenho minha mãe e ela é uma pessoa constante para quem não faz muita diferença datas comemorativas... Mas maio é difícil pq é meu mês de aniversário (favor não contar a ninguém) e eu passo ele inteiro lembrando das condições de meu nascimento, de como nasci exatamente nove meses depois de Jaqueline ter morrido (as pessoas estranham pq meu irmão se chama Rafael e minha irmã Rafaela e Jacilene combina com que? Com Jaqueline ora rsrs.

    Eu sei que se Jaqueline não tivesse morrido eu não teria nascido, mas sinto sua ausência de alguma forma... Acompanhei os anos de luto, lembro quando meu tio finalmente tirou a foto dela da parece, quando enfim a chupeta dela foi jogada fora e vi e revir escondida o álbum de fotos dela, um bebê enorme, negra idêntica a mim... Como séria ter uma irmã mais velha? Será que ela me ajudaria a enfrentar as coisas do dia-a-dia aqui em casa? Eu brigaria menos com painho? Sei lá... São bobagens... É engraçado pq também sinto um remorso por ter nascido... preferia a inexistência... Aaah como as reflexões de Maio são sempre tortuosas...

    E sim, Ligéia, vc como sempre tem uma pena tão suave, desliza como faca na Manteiga... Eu adoro o que vc escreve, mesmo quando vc me faz chorar!!!

    Obrigada por nos entregar seu texto e o prazer da leitura!!!

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    1. Pandora, primeiro quero que me desculpe por tê-la feito chorar. Não poderia imaginar. No entanto, por um lado fico satisfeita, pois meu texto comunicou, porque tinha sentimento (não sei escrever de outra forma)e você, sensível como já pude perceber que é, e como poucos, cada vez menos neste mundo, captou a energia que veio de um emaranhado de sentimentos, e mergulhou em seus próprios sentimentos, e me contou sua história, uma triste, mas bela história, uma história que te marca a cada ano. Acho que a Jaqueline teve seu tempo, e que você está no seu.

      Você com certeza já ouviu que uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Penso que o mesmo vale para as pessoas: uma pessoa é uma pessoa, outra pessoa é outra pessoa. Jaqueline era Jaqueline, Jacilene é Jacilene. E Jacilene tem a ver com você, unicamente com você! ;)

      Gostaria muito de poder falar mais sobre o que penso, mas julgo que aqui não seja local pra isso. Aos poucos a gente vai se comunicando, e se conhecendo. Aos poucos vou me soltando para falar de meus sentimentos, de meus pensamentos, de mim. Ainda não me sinto muito à vontade aqui. Pessoas como você é me deixam à vontade.

      By the way... O mês de maio não é ruim para mim,gosto dele, porque tive a maior alegria da minha vida nesse mês. Tive minha filha, rs.
      Olha, tenho aqui em casa flores de maio. Por algum motivo elas florescem bem antes e até bem depois de maio. Neste momento estão cheias de botões.
      Esse micro jardim de flores de maio, a partir de hoje, terá mais um significado. ;)

      Um grande beijo! E muitíssimo obrigada por gostar do que escrevo, ou de como escrevo, rs...

      Desculpe pelo papo cabeça, ok?


      Um beijo!

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    2. Ligéia eu vou guardar essas palavras muito bem na minha caixa: uma pessoa é uma pessoa, outra pessoa é outra pessoa. Jaqueline era Jaqueline, Jacilene é Jacilene. E Jacilene tem a ver com você, unicamente com você!

      Muito obrigada pelo calor das palavras... pq me fazem pensar em mim como única e não como um duplo braquelo de outra pessoa!!!

      E sim, espero que em breve você vá se sentindo mais e mais a vontade para falar porque suas palavras inspiram coisas boas!!!

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    3. Agora foi você quem me emocionou,... rs. Guarde na sua caixa, e nunca mais se esqueça disso, viu?. Eu falei de coração, e tenho certeza do que eu disse.

      um beijo, menina Pandora.

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    4. As noites insones são estranhas... elas nos levam a becos malucos sabe Ligéia e pensamentos insanos... Então eu voltei aqui novamente para rever suas palavras... As vezes as palavras são o melhor remédio... Obrigada por deixa-las aqui para que as pessoas possam sempre se reencontrar com suas palavras boas!!!

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    5. Oi Pandora... Que lindo você vir aqui, depois de mais de um ano. Fiquei muito emocionada. Você estava insone, e se lembrou das minhas palavras aqui para você, e voltou. Lindo isso! Você pode nem acreditar, mas tenho lido seus posts, assim como de outros que sei que sempre que escrevem, de alguma forma me tocam, ou me fazem pensar. Tenho mais refletido do que falado ultimamente, e escrever tbm é falar não é? rs. Muito obrigada de verdade, Pandora, suas palavras são tão bonitas, eu que tenho muito orgulho da minha filha, teria dois orgulhos se tivesse tbm uma filha como você.

      Um beijo.

      Cheros... sua linda :)

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  4. Ligéria, o destino te poupou de uma dor maior.
    Acho que seria mais trágico uma criança assistir a mãe morrer e nada poder fazer.
    Deus sabe o que faz.
    Beijos!

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  5. Voltei!
    Voltei para te dizer que só consigo entrar em teu blog quando clico em teu nome no de Gilberto também. rsrr
    Beijo!

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    1. Oi Janice, bom te ver aqui de novo. No caso que relatei, via minha mãe doente, mas não tinha ideia, não sabia de nada. Quando vi, já tinha acontecido. Mas, isso é coisa da vida. Tem histórias mais tristes, bem mais tristes. Obrigada por suas palavras amigas.

      Sobre o blog, olha, eu não sei o que acontece, chequei as configurações e está tudo nos conformes, rs...
      O blogger faz o que quer aqui no meu blog. Parece casa da mãe Joana! Muda a fonte, pede verificação de palavras que eu eliminei, , diz que meu blog foi excluído, enfim. Peço ajuda, mas a ajuda não vem... (oh !...) rs

      Espero que não deixe de vir aqui por causa desses desmandos do blogger. :(

      Obrigada, viu?

      Um beijo pra você.

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  6. Minha mãe é tudo para mim, fiquei bastante comovida com seu post, adoro o que escreves, passa sentimentos para quem está do outro lado do monitor,. Lamento por você não ter mais a sua mãe, mas pode acreditar que ela está lá no Céu contemplando cada passo seu e muito orgulhosa pela filha, um grande beijo e fique com papai do Céu! ☻

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    1. Acho linda a relação entre mãe e filha. Te parabenizo, e fico feliz, de você ter sua mamis, e te parabenizo pelo amor que tem por ela. Hoje em dia é complicada qualquer relação, imagine entre pais e filhos, com toda essa "modernidade" de comportamentos.
      Tenho uma boa relação com a minha filha, relação que eu cultivei. Tenho medo de faltar para ela. Eu sei que tudo se resolve, que as coisas continuam a caminhar, que a vida continua, e é por isso que não fico pensando nessas coisas, rs.

      Não é todo mundo que sente um texto.
      Obrigada por sentir, e obrigada por estar aqui.

      um beijo!

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Costumo responder aos comentários aqui no blog. Todas as opiniões são bem vindas, e importantes. Gosto de saber das pessoas o que pensam, o que sentem, o que gostam. Você que lê e prefere não se manifestar, quem sabe um dia volte para me dizer algo. Não tenho pressa, eu espero.

Divagar é preciso...