As ruínas daquela casa eram o lugar mais misterioso onde já estive.
Uma casa antiga, de tijolos de verdade, desbotados de sol e chuva, praticamente sem reboco, cujas portas e janelas de madeira, já há muito acinzentada pelo tempo, apesar
de sempre abertas, nunca revelavam os segredos do interior. Para os adultos da vizinhança era só uma casa abandonada, para nós, um santuário de aventuras, e de medo; Sim, medo, porque mesmo com todo interesse na diversão, sempre sentíamos
medo ao entrar lá, um medo gostoso de sentir. Às vezes, uma janela batia, e aí
a imaginação corria, tanto quanto nós, apavorados. A casa ficava no nível da
rua, mas o terreno era em declive, de modo que, para ir ao quintal, cheio de
árvores e mato, era necessário descer uma escada. O vão debaixo dessa escada
era um mistério à parte. Nas brincadeiras de esconde-esconde esse era o lugar
perfeito para se esconder, porque ninguém queria se esconder ali, e ninguém
iria procurar ninguém ali.
Os meninos costumavam "explorar" o quintal, por entre as árvores e no meio daquele mato, enquanto as
meninas ficavam bisbilhotando pelo lado de fora das janelas meio abertas, ou meio fechadas..., dos cômodos do porão. Ah, sim, a
casa tinha um porão! Cada cômodo da casa tinha seu porão, como se fosse outra casa, subterrânea, com chão de terra. Distinguia-se cada cômodo pelas colunas nos cantos e pelas vigas do teto, não havia paredes. E aquele cheiro úmido, de terra antiga... A casa era perfeita! Ficávamos imaginando passagens secretas,
morríamos de curiosidade de saber o que havia por trás de portas, por debaixo de
escadas, por entre vãos, e nisso consistia nossa brincadeira, desfrutar do mistério que envolvia aquela casa com seus cantos escuros, suas portas
entreabertas, suas janelas batendo, seus rangidos, seu cheiro de passado...
À noite, em nossas camas, imaginávamos que daquelas árvores
e do mato do quintal saíam monstros que dormiam durante o dia, e sentíamos
medo de que eles viessem nos pegar. Lembrávamos
do que nos disse alguém, que ali morava uma bruxa, e que um dia ela nos pegaria
invadindo sua casa e nos castigaria.
À noite pensávamos tudo isso, e cobríamos a cabeça para
dormir, mas no dia seguinte, levantávamos já pensando na próxima aventura na casa, em pular em cima do fogão a lenha, em explorar o quintal e bisbilhotar o porão, em colher as flores do mato e colocá-las numa garrafa com água para enfeitar um cômodo, em assustar com uma aranha e
fugir de abelhas.
Aquela casa era nossa "amiga oculta", uma espécie de tia, que nos contava histórias sobre um passado imaginário vivido ali, ou irmã mais velha, que brincava de pega-pega conosco, e era sempre ela quem corria atrás de nós...
Mas eis que um dia,
em pleno dia, um monstro que não dormia apareceu, e diante dos nossos olhares
assombrados, devorou nossa amiga, parede por parede, mastigou tijolo por tijolo,
arrancou-lhe os olhos de madeira acinzentados pela idade, e quando dela só restaram
pedaços, esmagou-os, sem dó, sem culpa. A fragilidade da velha casa que nos punha medo nos surpreendeu, e nos decepcionou...
Nenhuma bruxa veio reclamar sua propriedade. Nenhuma bruxa apareceu para castigar o terrível monstro que destruiu seu lar.
Nenhuma bruxa veio reclamar sua propriedade. Nenhuma bruxa apareceu para castigar o terrível monstro que destruiu seu lar.
Naquela noite, não imaginamos nada, cobrimos a cabeça e choramos
baixinho.
Imagem: Dakota Fanning (filme - O Amigo Oculto)
Imagem: Dakota Fanning (filme - O Amigo Oculto)
Nossa! adorei! me identifiquei com esse texto... quando criança existia uma fábrica de tecídos abandonada perto de casa, fonte de lendas também rsrss diziam os mais velhos que esta fábrica pegou fogo por conta de um pacto satânico do antigo dono, enfim, foi demolida e hoje é um conjunto habitacional!...
ResponderExcluirparabéns pelo zelo com o texto!
abraços.
Poxa, Davi!... Muito legal a historia dessa fábrica, de pacto satânico (rss), incêndio..., e depois, o conjunto residencial... Essa fábrica daria um belo conto!
ResponderExcluirAdorei que você adorou, e que se identificou. Quem sabe sai um texto dessa ideia da fábrica.
beijo.
E é tão bom chorar baixinho, não? Bjo
ResponderExcluirÀs vezes, Reiffer.
ResponderExcluirBeijo e obrigada.
Diante de um texto assim é impossível não conter a emoção. Também me identifico com ele. Aqui onde moro havia casa semelhantes, inclusive a do poema Aromas Plantados. Casas assim fascinam as crianças e eu que nunca deixe de ser uma, sempre guardo em mim as lembranças e as descobertas.
ResponderExcluirParabéns pelo texto e pelo talento!
Victor, sempre me lembro dessa casa, ela de fato existiu. "Aromas Plantados" me fez lembrar da casa dos meus avós, e me fez sentir saudade dessa parte da minha infância.
ResponderExcluirMuito obrigada pela sua gentileza.