Detesto que me roubem a solidão sem me dar em troca verdadeiramente companhia. (Friedrich Nietzsche).

terça-feira, 3 de abril de 2012

Modernidade à antiga



Quatro da tarde. Chovia em São Paulo. Quem disse que aqui é a terra da garoa deve viver debaixo de uma cachoeira! Eu estava na rua e tudo o que eu queria era ir pra casa. Eu e mais milhares de pessoas. Trânsito parado em São Paulo é quase um pleonasmo, mas em dia de chuva a cidade parece um estacionamento de shopping em véspera de natal. Taxi? Ahann...
Segundo a prefeitura, São Paulo conta com uma frota de trinta e três mil táxis, mas se você precisar de táxi em um dia de chuva, trinta e tres mil pessoas já pegaram um antes de você.
Fui até o ponto de ônibus, o guarda chuva, a essa altura, era mero acessório. O ponto estava lotado. E o ônibus provavelmente demoraria uma eternidade, e viria lotado, e naquelas cisrcuntâncias demoraria outra eternidade para chegar ao meu destino. De repente, algo inacreditável acontece! Um táxi com a luzinha acesa!  Pensei ser uma miragem, apertei os olhos e.. sim! Era um táxi, livre! Corri, e muita gente correu comigo, mas eu cheguei primeiro, por incrível que pudesse parecer, pois sou uma pamonha para essas coisas.
Assim que pus a mão na maçaneta uma outra mão se sobrepôs à minha. Olhei e vi um senhor, já de uma certa idade, um pouco alto, de terno bege escuro e de gravata, todo molhado (e quem não estava?) e de chápeu... Trazia uma maleta marrom, tipo "007", um pouco desgastada, na outra mão.  Ele me disse:
                  - A senhorita vai para onde? 
                  - Zona Norte, respondi.
                  - Ah, eu também, podemos dividir esse táxi?
 Olhei desconfiada para o homem. As buzinas nos ensurdeciam, o taxista pisou no acelerador para pressionar.
                   - Tudo bem, respondi.
O homem abriu a porta e fez um gesto com a mão para que eu entrasse primeiro. Não sei como tive coragem, mas o fato é que naquela hora não pensei em nada, tudo tinha que ser rápido, a situação não permitia "pensar", era pegar ou largar, e eu não ia largar aquele taxi por nada! Entrei no carro e o instinto me fez encostar o máximo que pude na porta à minha esquerda. O homem, sem tirar o chapéu, entrou e indicou o caminho ao taxista. Só mais tarde é que fui entender por que ele tinha dito ao taxista que seria melhor que ele ficasse primeiro. Em seguida ele olhou pra mim e disse:
                  -Que sorte, não é?
Esbocei um daqueles sorrisinhos e fiz um sinal afirmativo com a cabeça. Nisso, reparei que também ele estava colado à sua porta...
Passei os dedos pelo vidro da janela para desembaçar e fiquei olhando o trânsito e a chuva que não fazia questão nenhuma de mostrar que uma hora ia parar. De vez em quando olhava para o retrovisor do taxista. E se ele estivesse mancomunado com o homem para desviar do caminho e me levar para uma fábrica abandonada do bairro da Moóca (que fica na Zona Leste), onde eles poderiam tranquila e calmamente me atacar, roubar, matar e me deixar na primeira lixeira que vissem?
' Nossa, quanta imaginação ', pensei. ' Imagine se um senhor  de  idade iria fazer uma coisa assim '.
Resolvi relaxar. Me preparei para a tortura chinesa que ia ser o trajeto com o trânsito daquele jeito. Durante uns dez minutos reinou o silêncio. De repente, o homem começou a falar sobre si. Disse que era aposentado mas que continuava trabalhando, primeiro porque não queria "ficar para trás", não queria envelhecer mais rápido, perder suas capacidades físicas e mentais, depois, pelo mesmo motivo da grande maioria que se aposenta: o baixo valor mensal da aposentadoria. Prestava serviços como autônomo para a mesma empresa em que trabalhou durante décadas. Disse que era um homem "às antigas", que preservava o passado. Não que vivesse dele, mas que não se desfazia dele. Que nunca se casara, que morava sozinho, que toda sua mobilia era ainda a dos seus pais, já há muito falecidos, e que tudo estava exatamente no mesmo lugar em que sempre esteve. Que há anos não comprava roupas, pois a suas estavam todas inteiras e bem cuidadas, talvez um pouco desbotadas, mas não rasgadas ou remendadas, e que raramente comprava sapatos, sempre os levava no sapateiro. Disse que as roupas servem para as pessoas não andarem nuas, e os sapataos para proteger os pés.
Gostava de escrever cartas, e escrevia à mão. Tinha uma máquina de escrever, Olivetti... Tinha um computador também, só que não era "desses modernos", "já está velho, como eu, mas funciona perfeitamente". E o tinha usado pouco, só para falar com alguns amigos, e amigas. Mas isso já fazia algum tempo... O computador foi de um sobrinho do interior que morou com ele para estudar aqui (esse sobrinho já estava casado e com filhos). E foi esse sobrinho que o introduziu na rede e o iniciou no mundo virtual...
Eu ouvia tudo calada, e evitava encarar o homem, me sentia constrangida por estar num taxi com um total desconhecido. Questionava minha sanidade.
Aconteceu que acabei por descontrair, e comecei me interessar pelas histórias daquele senhor de voz sonora, apesar da idade, de chapéu, e com roupas que cheiravam a coisas guardadas. Até que chegamos à sua casa. Tinha parado de chover e o sol voltara a brilhar naquele fim de tarde. O taxista encostou, e eu fiquei observando a casa pela janela aberta do lado do meu "sócio". Era uma casa de varandinha, antiga, porém, muito bem conservada, pintada de branco, branquíssimo. Não havia nada danificado, ou caído, enferrujado, um vidro quebrado que fosse. Nada ali era velho, apenas antigo. Na frente havia um jardim, dividido pela passagem de cimento que levava do portão à pequena varanda da entrada. Havia muitas plantas, e antúrios e roseiras, tudo muito viçoso e bonito, as folhas e pétalas cobertas de gotas de chuva, sob o sol da tarde molhada.
A casa ficava no centro do terreno, e as laterais, também de cimento, davam acesso ao quintal, que parecia ser grande e com árvores.
Estava nessa observação quando ouvi um "clik". O homem estava abrindo a maleta. Meu coração deu um pulo! A paranóia de cidade grande me acometeu de novo. Por um instante imaginei uma faca de matar gente no box (ou em taxis), uma mini serra elétrica, uma furadeira, e me lamentei por não ter ao menos um taco de baseball esquecido ali por outro passageiro, mas isso serviu para eu perceber que andei vendo filmes demais, pois o que ele tirou da maleta foi sua carteira, e dela retirou uma nota de cem, que entregou ao taxista:
               - A corrida da moça está paga.
Eu já ia dizendo alguma coisa contra, mas ele me interrompeu:
               -Por favor, moça, eu faço questão. Você me ouviu, ouviu minhas histórias, deu atenção às minhas bobagens de velho. Isso para mim valeu e vale muito mais que uma simples corrida de taxi. Por favor, aceite, faça só mais isso por este velho antiquado aqui.
E disse ao taxista:
               - Pode ficar com o troco.
Disse isso e saiu, não sem alguma dificuldade.  Fui para o lado da janela de onde eu via a casa. Um gato veio dos fundos e pulou na mureta vazada, também pintada de branco. Atrás dele veio um cachorro, sem raça definida, latindo e pulando no portão, em festa para o dono. O homem foi até eles, sorrindo, e os apresentou:
               -  Este é o Doutor, e a gata é a Lara.  Todos os cachorros e gatas que viveram aqui tiveram esses nomes.

Nunca saberei descrever o que sentia naquele momento. Só sei que eu estava com o coração cheio de ternura por aquele senhor de chapéu, solitário e sensível, amante de bichos e da natureza, e que tinha o poder de conservar o passado que lhe fora bom.
Agradeci a ele e lhe desejei  muita felicidade, do fundo do meu coração.
O taxi já ia saindo quando o homem  se aproximou da janela do carro para me dizer:
                - Meu nome é Gentil.
E antes que eu pudesse dizer o meu:
                - A senhorita tem ICQ?...



       
                                       ______________________________________________

Nota: ICQ é um programa de comunicação instantânea pioneiro na Internet. Surgiu em 1996. A sigla "ICQ" tem base na pronúncia das letras  de "I Seek You" - em português: "Eu procuro você", e ficou popularmente conhecido no Brasil como "i-cê-quê". Com a chegada do MSN Messenger, o ICQ foi esquecido.


11 comentários:

  1. haha, "pois sou uma pamonha para essas coisas."
    Quase todo dia eu tenho que empurrar muita gente pra conseguir pegar um lugar sentada no busão, meio que tô aprendendo a deixar de ser pamonha nesse sentido!! rsr

    "me levar para uma fábrica abandonada do bairro da Moóca, onde eles poderiam tranquila e calmamente me atacar, roubar, matar e me deixar na primeira lixeira que vissem? " Eu tb sô muito noiada com essas coisas...

    Nossa, muito emocionante isso que aconteceu com vc, é...perdidos por ai existem muitas pessoas dispostas a serem como o próprio nome do senhor: Gentis.Isso nos faz até pensar se não existem anjos na Terra. E que pela nossa nóia de violência a gente desconfia de todo mundo.

    bj, ana Karoline.

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    1. Costumo dizer que viver em cidade grande não é para qualquer pessoa. Tem que ter muito equilíbrio, em muitos sentidos... E sou mesmo uma pamonha pra essas coisas, rs. Não gosto nem um pouco de me ver no meio de um monte de gente querendo a mesma coisa...
      Enfim, Karoline, você tem razão, acredito nesse negócio de que existem alguns anjos por aí. Sorte de quem se depara com um.
      O texto é ficção, mas poderia acontecer, por que não? rs Um beijo, e muito obrigada por comentar aqui.

      (Não estou recebendo suas atualizações. E quando clico em você não consigo acessar seu blog. Mas, vou dar um jeito. Gosto muito do que você escreve... beijo!)

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    2. hehe, pois é, é que meu blog está mesmo com problemas nas atualizações, eu já fucei em tudo e não dei jeito e não queria fazer um novo, então deixei como tá, mas qualquer coisa o link é: http://jog-dodestino.blogspot.com.br/

      ^^'

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  2. É realmente viver em cidade grande não é fácil. Ainda bem que minha cidade é bem pequena e calma. Apesar dessa pasmaceira cansar às vezes.

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  3. Olha, Gilberto, às vezes eu tenho vontade de fugir para uma cidade assim, para passar um tempo. Amo São Paulo, é uma cidade incrível, uma terra de oportunidades. Porém, tem que ter estrutura, senão, não vence.

    Obrigada, e um abraço.

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  4. As vezes quando essas coisas "estranhas" me acontecem eu me pergunto se vivi ou se sonhei com aquilo! Mas a vida é cheia de surpresas agradáveis e encontros fabulosos, por isso costumo dizer que gosto de gente, apesar de morrer de medo dela e ser paranoica rsrs...

    E sim, São Paulo, como uma boa grande metrópole é palco de grandes histórias, que bom que ainda há quem as saiba contar!!!

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  5. Pandora, a vida é exatamente como você disse, não tem só coisa ou gente ruim, não. Eu gosto de socializar, mas não sou exatamente sociável, apenas não tenho medo de gente (deu pra entender? rs..). São Paulo é mesmo um palco de muitas histórias, tem dramas, aventuras, e comédias também, rs.

    Você diz coisas muito bonitas. Gosto muito!

    um beijo, e muito obrigada pela sua presença.

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  6. Oi Ligéia, vim responder a sua pergunta, o ultimo comentário seu que recebi foi na postagem sobre a blogosfera literária! A proposito, eu também giro e rolo e volto a Machado de Assis, ele é meu fofo!!!

    Obrigada pela atenção e sim vc é que escreve lindamente com lirismo, e eu como boa romântica amooo!!!

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    1. Ok, Pandora. Então vou lá comentar de novo. Sobre Machado, ele é nosso FOFO!... rs

      Que bom saber que vc gosta do que escrevo!

      Muito obrigada! um beijo!

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  7. Eu não tinha prestado atenção no transito de minha cidade e sempre achei que os ônibus iam e vinham vazios, Acha isto ótimo, pensava que era organizado. Isto não é verdade. Eles passam no ponto pontualmente no horário.
    O que eu não tinha notado é que as pessoas estão deixando de andar de ônibus para ir trabalhar de carro. O transito de carro está um inferno. Falta uma campanha para o uso de carro numa necessidade.
    Beijos!

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  8. Isso é um absurdo, Janice. O povo não sabe mais ir na padaria da esquina se não for de carro. Por isso o trânsito está cada vez pior e as pessoas cada vez mais gordas...

    bjos!

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Costumo responder aos comentários aqui no blog. Todas as opiniões são bem vindas, e importantes. Gosto de saber das pessoas o que pensam, o que sentem, o que gostam. Você que lê e prefere não se manifestar, quem sabe um dia volte para me dizer algo. Não tenho pressa, eu espero.

Divagar é preciso...